top of page
Serrotes contra sarapatéis na Glória...

Serrotes e sarapatéis num jogo inesquecível em Glória

 

Na então aldeia da Glória, décadas 50 e 60, havia um rapaz conhecido pelo reguila do cabeço da escola velha. A história passa-se num jogo anual que se realizava com uma bola de trapo entre serrotes e sarapatéis.

Os serrotes eram os rapazes que habitavam a sul do ribeiro que atravessa a Glória e os sarapatéis os que viviam a norte. Reconhecia-se uma grande rivalidade entre estes dois grupos bairristas.

Os treinos e jogos principais dos serrotes decorriam num largo a sul da Glória, entre a rotunda (Glória/Fajarda/Coruche) e o alto do cabeço, antes da dita escola velha ter desaparecido da nossa vista. Nesse largo, onde se jogava estão hoje moradias.

Os treinos e jogos dos sarapatéis decorriam no "pait" (pátio da Igreja, hoje Largo D. Pedro I). Por algum tempo, o reguila assistia impaciente a muitos desses encontros e em alguns jogos só se entrava neles quando saía um serrote por cansaço ou lesão.

A notoriedade do reguila denota-se pelo domínio da bola de trapo. Lembro-me dele e da gritaria que fazia para orientar o seu grupo. Era um pouco reservado nas conversas e não facilitava a fala a estranhos, mas eu consegui chegar perto dele e conhecer um pouco dos dois momentos que vou partilhar aqui.

Estes jogos tinham início depois das aulas e duravam o resto da tarde, nessa altura surgiam as necessidades fisiológicas. As espectativas de alguém reentrar no jogo depois de se ausentar era mínima, mas imaginação nunca faltou ao reguila que "nunca se ausentou para ir mi**r ao chaparral"... Na altura não havia casas de banho (retretes). Mas como fazes isso? Perguntei eu: "fazemos um buraco na areia, deitamo-nos sobre ele, rebolamos quando ninguém vê e depois tapamos".

Num belo dia de tarde assisti a um desses jogos anuais, como sempre serrotes contras os sarapatéis, os jogos mais emocionantes da altura que se realizavam uma vez por ano, antes treinava-se para este evento que se aguardava ansiosamente. Mas, como vinha sendo hábito, alguém quis entrar no jogo sem ser convidado. As balizas eram montinhos de areia que abundava no "pait" (largo ra igreja) e o intervalo entre esses montinhos mediam-se em seis passos, à dimensão da reduzida área de jogo.

Nessa tarde de sol esperava-se a proeza que se repetia em jogos anteriores pelo tal "sarapatel", mas desta vez não se saiu tão bem como nas intrusões anteriores. Ele chegou e aproximava-se da dita baliza e diz em voz alta " eu quero jogar", o reguila gritava: "não podes, não há vaga no jogo". De seguida dava um forte pontapé nos montinhos de areia que faziam de postes da baliza e o jogo parava para recomeçar mas com mais um elemento que escolhia a equipa em que ia jogar.

O sol escondia-se e o reguila, com o seu grupo, subiam pelos atalhos até ao Cabeço da Escola Velha, altura mais segura para se falar sobre a estratégia de meter o "sarapatel" no lugar. Nessa tarde, em que assisti ao jogo anual, pude também ver a estratégia: o reguila colocou duas pedras grandes por baixo de cada um dos montinhos de areia e deu sinal à sua equipa para aguardar.

A chegada do "sarapatel" era previsível e eu temi por um momento mais trágico. Com ar intimidador voltou a gritar ao líder reguila e este responde-lhe com a mesma frase de sempre: "não podes, não há vaga no jogo". Logo de seguida um forte pontapé desfazia um dos montinhos, mas desta vez o momento foi seguido de alto grito: "aiiii!"... O jogo terminou de imediato e todos saíram a correr para casa, os serrotes subiram por atalhos na encosta e chegaram em segurança ao seu bairro no cabeço da escola.

Depois dessa peripécia nunca mais constou na Glória que alguém entrasse no jogo da bola de trapo sem ser convidado. A grande lição de vida ficou na memória coletiva destes rapazes do sul e do norte do ribeiro da Glória.

​Publicado: (c) 2012 Celestino Silva

Os seus comentários

bottom of page